Pelo negro da terra e pelo branco do muro

 Ontem no âmbito do Dia da Cal em Cacela a Velha tomei conhecimento deste texto absolutamente visionário de Sophia que anteviu muito bem o rumo que o Algarve viria a tomar nas décadas seguintes. Temos que ter em conta que a data da sua publicação é 1963, mais concretamente em Janeiro desse ano no n.º 21 da “Távola Redonda”. Devo agradecer a Fernando Silva Grade pela sua divulgação e por me indicar onde o poderia encontrar. 
Ainda no âmbito da Cal, da sua cor, textura próprias e significado patrimonial recomendo a leitura de um texto de Fernando Silva Grade publicado ontem no blogue A Defesa de Faro.   
Por fim recomendo vivamente a experiência que a ADRIP Cacela, Caiar-te! e Domus Mater proporcionaram e que pelos vistos vai repetir-se. 




Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Há uma beleza que nos é dada: beleza do mar, da luz, dos montes, dos animais, dos movimentos e das pessoas.
Mas há também uma outra beleza que o homem tem o dever de criar: ao lado do negro da terra é o homem que constrói o muro branco onde a luz e o céu se desenham.
A beleza não é um luxo para estetas, não é um ornamento da vida, um enfeite inútil, um capricho. A beleza é uma necessidade, um princípio de educação e de alegria.
Diz S. Tomás de Aquino que a beleza é o esplendor da verdade. Pela qualidade e grau de beleza da obra que construímos se saberá se sim ou não vivemos com verdade e dignidade. A obra do homem é sempre um espelho onde a consciência se reconhece.
Quando olhamos à nossa roda as aldeias, vilas e cidades de Portugal temos de constatar que quase tudo quanto se construiu nas últimas décadas é feio. Feio e-ai de nós!-para durar: Feias as obras públicas e feias as obras particulares. As excepções à regra de fealdade são raras.
Costuma dizer-se que a nossa pobreza é a origem dos nossos males. Mas o que caracteriza grande parte da nossa arquitectura desta época é o novo-riquismo. Um novo-riquismo exibicionista – quase sempre sem funcionalidade e sempre sem cultura e sem sensibilidade
Isto é especialmente triste quando comparamos o presente com o passado: de facto olhando ao antigos solares de pedra e cal vemos que a nossa arquitectura soube criar nobreza sem riqueza. Daí a pureza e a dignidade de tantas casas antigas.
Agora não se trata evidentemente de copiar o passado: a arquitectura é uma arte é criação e não imitação. Continuar não é imitar e imitar é sempre ofender e trair aquilo que é imitado. Mas é necessário que exista aquela consciência do passado e do presente a que chamamos cultura. Somos um país antigo. Dizem-nos que somos um país pobre. É estranho que destas coordenadas resulte uma arquitectura de novos ricos.
A construção da cidade moderna traz problemas difíceis de resolver: problemas de espaço e de circulação. Mas entre nós estes problemas só existem em Lisboa e no Porto. No resto do país os problemas são quase unicamente problemas de humanidade, de bom senso, e de bom gosto ou seja problemas de moral, de inteligência e de sensibilidade e de cultura.
A regra a seguir é esta: uma casa para todos e beleza para todos. E a beleza não é cara. É geralmente menos cara do que a fealdade que quase sempre se chama luxo, monumentalismo, pretensão. A beleza é simplicidade, verdade, proporção. Coisas que dependem muito mais da cultura e da dignidade do que do dinheiro.
Penso neste momento especialmente na terra do Algarve, com suas praias, suas grutas, seus promontórios, seus muros brancos, sua luz claríssima. É preciso não destruir estas coisas. É preciso que aquilo que vai ser construído não destrua aquilo que existe.
A arte é sempre a expressão duma relação do homem com o mundo que o rodeia. A arquitectura é especificamente a expressão duma relação justa com a paisagem e com o mundo social. Fora destas coordenadas só há má arquitectura.
Afirma-se que é necessário desenvolver turisticamente o Algarve. Para isso será preciso construir. Mas é necessário que aqueles que vão construir amem o espaço, a luz e o próximo. Existem todas as condições para que se possa criar no Algarve uma boa arquitectura: ali temos uma paisagem e uma luz que pedem “arquitectura”, ali encontramos um uso belo e tradicional do barro e da cal; ali temos uma arquitectura local lisa e pura como uma arquitectura moderna, uma arquitectura popular cujos temas o arquitecto poderá desenvolver duma forma mais técnica e mais culta: ali temos um clima que facilita a vida e propõe soluções de extrema simplicidade.
Ali poderemos ter os materiais, as inovações, a técnica e a cultura do nosso tempo. Ali poderão trabalhar os arquitectos competentes que existem no nosso país.
Mas é urgente evitar os seguintes perigos:

A incompetência
O saloísmo
As especulações com os terrenos
Os maus arquitectos
O falso tradicionalismo
A mania do luxo e da pompa
As obras de fachada

Acima de tudo é preciso evitar a falta de amor: De todas as artes a arquitectura é simultaneamente a mais abstracta e a mais ligada à vida. Aqueles que não amam nem o espaço, nem a sombra, nem a luz, nem o cimento, nem a pedra, nem a cal, nem o próximo, não poderão criar boa arquitectura.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Fonte:

Comentários

Escritos disse…
Texto puro e verdadeiro. De valia para todos os segmentos.

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