Soluções e Técnicas Tradicionais- Os Trabalhos de Massa
A
arquitectura passa invariavelmente por um processo de transferência
de influências do círculo erudito para a habitação popular, e
isto reflecte-se a nível decorativo, de soluções arquitectónicas
e selecção de materiais. Tal processo aconteceu também com os
chamados “trabalhos de massa” ou técnica de ornatos de alto e
baixo relevo.
Nos
finais do século XIX, inícios do XX vulgarizou-se e passou a
figurar no conjunto de soluções da arquitectura vernácula,
especialmente nos meios urbanos do Algarve central, embora existam
vários exemplares em meio rural ou deslocados deste enquadramento
geográfico, o que não torna esta delimitação e espaço temporal
uma regra.
Alguns
dos trabalhos em massa mais notáveis conhecidos no Algarve estão em
Faro ou nos seus arredores, refiro-me à Horta do Ourives, ao celeiro
da Cerca de S. Francisco ou à Igreja da Ordem Terceira do Carmo,
todos exemplares de arquitectura nobre e religiosa de Setecentos. Há
ainda que referir os solares das áreas peri-urbanas ou mesmo rurais
como, por exemplo, a “Quinta dos Macacos” actualmente fronteira à
Estrada Nacional 125 ou mesmo outras nas proximidades de Tavira. Após
este período a técnica foi-se vulgarizando passando dos estratos
superiores da sociedade para a burguesia até finalmente se inserir
no repertório da arquitectura popular, cujo caso mais paradigmático
são as conhecidas casas com platibanda ornada, mas podem, a título
de exemplo, verificar-se também nos vãos de portas e janelas e
socos das casas. À medida que o uso desta solução se expandiu a
procura pela cantaria foi também diminuindo, vendo-se em muitas
situações substituída pelos ornatos em baixo relevo.
Incontornável
na nossa construção tradicional a cal é a matéria-prima
predominante das argamassas utilizadas para a execução dos
trabalhos de massa, e quando misturada com diversos outros materiais
permite uma grande variedade de acabamentos. Materiais esses que
podem ir da areia, ao pó de pedra , “baguinho da ribeira”,
pigmentos naturais entre outros.
Após
a fachada preparada e a argamassa para os ornatos pronta, a execução
da técnica conta diversas vezes com o apoio de moldes para assegurar
as formas desejadas. A remoção dos excessos de massa e acrescento
noutros lados fazem parte deste trabalho que apoiado nos moldes se
vai compondo à medida que é trabalhada.
A
opção pela massa em vez da cantaria na arquitectura popular esteve
ligada à diminuição de custos, mas também às possibilidades que
esta solução permite pela sua plasticidade, o que no calcário da
região implicaria em muitos casos um maior grau de dificuldade na
execução, e consequentemente maior mestria e mão de obra. A
preparação da cantaria é muito mais onerosa pois passa por um
maior número de processos e é mais exigente no transporte que a sua
alternativa, a cal que está presente de início na grande maioria
das obras, para a realização das argamassas que são feitas
conforme o uso pretendido.
A
“democratização” desta solução trouxe uma abertura à
criatividade dos proprietários e mestres, e passaram a estar
mesclados motivos de influência erudita com outros do quotidiano ou
imaginário popular. A decoração assume ainda mais um papel de
personalização e dignificação das moradias, que mais ou menos
modestas se diferenciavam umas das outras. Em pleno século XX com
uma maior difusão e penetração das correntes artísticas é
notório nas platibandas e no cimo dos vãos profundas influências
do geometrismo da Art-Déco,
assim como a diferença na paleta cromática em detrimento da pedra
natural.
O estudo, registo e salvaguarda deste tipo de trabalhos ainda não
estão suficientemente desenvolvidos, é importante executá-los
visto que muitos exemplares degradam-se, ou são substituídos em
renovações duvidosas ou demolidos para dar lugar a construções
modernas. A utilização dos ornatos em massa é uma das
características da arquitectura popular algarvia que merece ser
potenciada e divulgada de modo a renovar o interesse pelo tema e
também ser motivo de interesse turístico. A criação de linhas de
produtos inspirados pelas formas dos trabalhos em massa é já uma
realidade que transparece o significado destes para a identidade e
imagem regionais, um cartão de visita bem decorado.
Leituras recomendadas:
Fernandes, José Manuel; Janeiro, Ana (2005)
Arquitectura no Algarve - Dos Primórdios à Actualidade, Uma
Leitura de Síntese. CCDRAlg / Edições Afrontamento, Lisboa
Fernandes,
J. Manuel; Janeiro, Ana (2008).
A
Casa Popular do Algarve, espaço rural e urbano, evolução e
actualidade. CCDR
Algarve/ Ed. Afrontamento, Lisboa
Santos, Marta (2008).
“Argamassas
e Revestimentos”, in Materiais, sistemas e técnicas de
construção tradicional: Contributo para o estudo da arquitectura
vernácula da região oriental da Serra do Caldeirão,
CCDRAlg/ Edições Afrontamento, s.l., pág. 116
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